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Alunos de religiões afro-brasileiras relatam preconceito em sala de aula
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Alunos de religiões afro-brasileiras relatam preconceito em sala de aula
Estudantes são obrigados a rezar o Pai Nosso e tirar adereços
O GloboTodos os dias, quando chegava à escola, Kayque Ferraz era obrigado a rezar o Pai Nosso. Adepto do candomblé, o menino de 8 anos se recusava a cumprir a ordem: dizia que era filho de Xangô e, portanto, permaneceria em silêncio. A professora e os colegas, no entanto, insistiam. A ponto de o menino, às vezes, voltar para casa sem ter conversado com ninguém no colégio. Grazielle, mãe de Kayque, percebeu o comportamento estranho e foi conversar com a diretora. Pediu para que a fé da criança fosse respeitada, mas nada mudou.
— Os professores e a diretora diziam que ele devia rezar porque era a regra da escola — lembra. — A situação era ainda pior quando passávamos em frente a outro colégio, onde os alunos o chamavam de macumbeiro e o mandavam ir para a igreja. No início do ano, mudamos de casa, de Duque de Caxias para a Pavuna (na Zona Norte do Rio), e no novo colégio ele tem aulas sobre cultura africana e nossa crença é respeitada.
Kayque é um exemplo da visão intolerante de diversas instituições de ensino, seja em relação a religião ou gênero. Na edição de hoje, O GLOBO aborda a hostilidade imposta a estudantes adeptos de credos oriundos de matrizes africanas. O combate a casos como esses, que se multiplicam pelos corredores escolares, caminha a passos lentos.
SEM POSIÇÃO OFICIAL
Em 2014, a Conferência Nacional de Educação (Conae) — encontro organizado pelo governo federal — orientou o Conselho Nacional de Educação (CNE) a elaborar um documento que limitasse as manifestações religiosas em instituições educacionais. A iniciativa, que teria como finalidade assegurar uma escola laica e proteger alunos de episódios de intolerância religiosa, no entanto, ainda não foi elaborada.De acordo com o Conselho, a pauta da Comissão de Ensino Religioso na Escola Pública foi preenchida pela discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelecerá diretrizes para o ensino básico. A última versão da Base ligada à educação infantil e ao ensino fundamental foi divulgada em abril e retirou do texto o ensino de religião, o que gerou reação de parlamentares conservadores.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da educação, o ensino religioso “é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. A matrícula, porém, é facultativa. A lei estabelece ainda que é proibida a doutrinação dos alunos para alguma religião.— O que estamos analisando sobre a Base, na prática, tem relação com o que foi requisitado pela Conae. Dependendo do que for colocado na Base, resolvemos a outra questão — explica o presidente da comissão no CNE, Gilberto Garcia, destacando que o combate à intolerância é urgente. — No ano passado, muitos pais entravam em contato com o Conselho para reclamar do ensino de história africana, diziam que era macumba. Se trabalharmos a religião como um fenômeno social e cultural isso pode contribuir para a diversidade.
O ensino de história e cultura afro-brasileira foi instituído em 2003 como obrigatório nas escolas de ensinos fundamental e médio do país. Mas, quase 15 anos depois, praticamente não há informação sobre sua capilaridade no sistema brasileiro. Para auxiliar na fiscalização do cumprimento da legislação, o Conselho Nacional do Ministério Público e a organização Ação Educativa fizeram um guia com parâmetros para que seja possível identificar como seria uma aplicação efetiva da lei.
— Observamos diversos avanços, mas ainda há uma baixa institucionalização da lei no sistema educacional — conta Denise Carreira, doutora em educação e coordenadora executiva da Ação Educativa. — Ela ainda depende da iniciativa de professores, ou de pessoas comprometidas com a agenda de enfrentamento ao racismo. Ainda não se entende a lei como algo central no debate educacional do Brasil.
Antropóloga e integrante do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF, Roseane Rodrigues atenta que o preconceito religioso visto nas escolas é resultado de um projeto secular de transformação da população brasileira em brancos e cristãos.
— Nós temos um dos racismos mais perversos do mundo. Meus alunos negros não se veem como negros — conta. — A discriminação religiosa é o sinal mais evidente, porque existe uma negação na tentativa de compreender a mitologia africana, considerada inferior e sem prestígio em relação à cultura ocidental. Por que falamos da deusa da fertilidade grega, mas evitamos um debate sobre Oxum?
A pesquisadora Marta Ferreira analisou cadernos escritos por candomblecistas de 9 a 17 anos de idade. Os jovens iniciados na religião anotam sua vivência espiritual e de que forma ela é vista e pode ser aplicada fora do terreiro:
— Conferimos como os jovens e adolescentes se sentem coagidos e avaliam com quem podem falar sobre sua religião — relata. — Há professores que tentam convertê-los. Querem que tire seus fios de conta, que são adereços do candomblé, antes de entrar na sala. Para evitar questionamentos, muitos alunos se afastam do colégio quando cumprem um período ritualístico e perdem aulas.
A professora Juliana Freitas, adepta do candomblé, tenta incentivar os estudantes a não esconder sua crença.
— Muitos estudantes tentam esconder, porque preocupam-se com a opinião dos professores — conta Juliana, que trabalha em uma escola particular. — Vejo algumas colegas que pregam o respeito pelo candomblé, mas alguns dizem que os estudantes são “muito crianças para isso”, quando se referem ao terreiro.
No ano passado, um relatório da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa alertou que, entre 2011 e 2015, mais de 70% dos crimes de intolerância religiosa foram praticados contra religiões de matriz africana. O professor é a terceira posição que mais comete discriminação, perdendo para o seguimento “desconhecido” e “vizinhos”.
Em nota, a Secretaria municipal de Educação informou que desenvolve trabalhos sobre intolerância religiosa nas salas de leitura e que atua na formação de professores no programa “Rio — Escola sem preconceito”. E a Secretaria estadual de Educação afirmou que a intolerância não é “ocorrência rotineira” e que o aluno pode optar por não cursar o ensino religioso: “Eventuais casos, se acontecem, serão isolados”.
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